Algumas vezes encerro os atendimentos do dia com o trecho de uma música do Baia na cabeça. Em looping. A música fala o seguinte: "parece até que eu sou um livro mal escrito e que você é uma caneta cor vermelha, rasurando o que não aceita e não consegue decifrar. Outras vezes, você tenta feito louca, rasgar as minhas páginas..."
E é isso que muitas pessoas pedem quando chegam no consultório: que sejamos como uma caneta vermelha, marcando tudo aquilo que não está certo, corrigindo comportamentos e, sempre que possível, que a gente elimine os pontos considerados inadequados, errados, desagradáveis.
E eu sempre me pergunto: errados, inadequados e desagradáveis para quem? A partir de qual referência?
Em uma sociedade que reverencia a racionalidade, sentir, muitas vezes soa como doença. É a patologização da vida. Não posso sentir essa raiva toda, não posso ficar triste, estou desanimado, preciso de ânimo, tenho que produzir. Me conserte! Não consigo "funcionar" em minha plenitude sentindo isso tudo. EU NÃO POSSO ERRAR!
Ecos de uma sociedade positivista, que faz força para que sejamos iguais, com os mesmos desejos, reações... Para que sejamos obedientes e busquemos desesperadamente atender a todas as demandas e expectativas de um outro. Negligenciando o que sentimos, queremos, precisamos. Frustrades por não conseguirmos o que queremos, esperando que alguém faça o mesmo esforço para atender nossas demandas que deixamos de lado. Mas sem pedir aquilo que queremos, muites até mesmo por nem se darem conta mais dos seus desejos.
Frequentemente a conclusão a qual se chega é: eu não sou o suficiente. Preciso me consertar para merecer. Por favor, me conserte. Quando eu estiver em perfeito estado, quem sabe eu seja o suficiente e aí consiga estar satisfeito.
O suficiente pra quem? A partir de qual referência? Fica a pergunta
Esse texto é uma reflexão compartilhada que não pretende encerrar nada, muito menos estabelecer verdades absolutas (elas não existem), mas talvez seja importante dar mais espaço para aquilo que é possível ser e sentir. Para a forma que somos afetades pela vida... Quem sabe?
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